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O brincar como o tempo e o espaço para constituir-se sujeito

O BRINCAR COMO O TEMPO E O ESPAÇO PARA CONSTITUIR-SE SUJEITO: SUPORTE PARA O FUNCIONAMENTO DA FUNÇÃO MOTORA

Por Nivaldo Torres


Segundo Altman (1999), o seio oferecido, os olhos apaixonados que seguem seus movimentos, o contato com a face da mãe que o embala e o sorriso do pai que o recebe nos braços são os primeiros brinquedos do bebê. Para depois, aos poucos, afirma a autora, perceber as próprias mãos, segurar os pés, tatear o nariz, orelhas e boca, despertando seus sentidos num mundo de descobertas. Desta forma, continua a autora, é a aventura de descobrir-se e reconhecer sons, cores, formas, que desperta a criança para o brincar a partir do mundo que a cerca.

Para Altman (1999, p. 31) “No ciclo da vida sempre há de ser assim. No começo, a criança é seu próprio brinquedo, a mãe é seu brinquedo, o espaço que a cerca, tudo é brinquedo, tudo é brincadeira”.


A narrativa da autora sobre os objetos naturais com os quais as crianças indígenas descobriam a sua existência me fizeram lembrar de minha infância entremeada de riachos, açudes, árvores, folhas, pequenos animais na fazenda de meu avô. São lembranças eternizadas no meu infantil do adulto que sou hoje.

A folha verde que balança ao vento, a borboleta que bate asas, o barulho da chuva, o farfalhar dos pássaros sobre as folhas secas espalhadas pelo chão, as vozes dos animais, o brilho do sol, a claridade da lua fazem parte, com certeza, das descobertas do indiozinho que há muita mais de quinhentos nascia no Brasil (ALTMAN, 1999, p. 23).

Seguindo o curso da autora, um fato narrado por ela chama a nossa atenção, apontando que são os cuidados especiais dedicados à mulher indígena quando dá à luz, nos quais o pai, por uma questão de costume, vai meter-se com a criança dentro da rede, cobrindo-se muito bem e só saindo dali por ocasião da queda do cordão umbilical, considerando como questão de honra prestar os maiores cuidados à mãe para que a criança não sofra. Esse apoio à mãe que é dado pelo pai, sabemos hoje, é fundamental para o equilíbrio físico e mental da mãe, que terá que dedicar um longo período de cuidados ao seu bebê, ofertando-lhe ações essenciais em função de sua natureza imatura, ficando a sua existência numa dependência direta do outro semelhante.

Dessa relação mãe/bebê, mãe/bebê/pai, advém sua estruturação psíquica e o seu “desenvolvimento”: linguagem, esquema corporal, imagem do corpo e socialização, interdependentes do jogo de identificações com a função materna e paterna. Um exemplo nos é dado pela autora, ao dizer que a primeira operação à criança era lhe achatar o nariz, esmagando-o com o dedo polegar; depois era a vez de lhe furar o lábio; se era rapaz, o pai pintava-o de preto e encarnado e lhe punha ao lado, na rede, uma macana (espécie de maça ou clava usada pelos indígenas) pequena e o seu arquinho e seta, dizendo-lhe: “quando cresceres, meu filho, sê forte, e vinga-te dos teus inimigos!”.

E assim, em meio à rica natureza, recebe a criança seu primeiro objeto-brinquedo que só irá usar muito mais tarde, tratando de imitar os adultos e nada preocupado em vingar-se de inimigos. (ALTMAN, 1999, p. 232)

Pensemos, agora com Freud, em Animismo Magia e Onipotência de Pensamentos. Ele diz:

Apenas em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência de pensamentos, esse campo é o da arte. Somente na arte acontece ainda que um homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses desejos e o que faça com que um sentido lúdico produza efeitos emocionais – graças à ilusão artística – como se fosse algo real (FREUD, 1913-1914, p. 113).

Em outro texto, Escritores Criativos e Devaneios, Freud se pergunta: “Será que deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade imaginativa?” (FREUD, 1906-1908, p.149). Ele sustenta que a preocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Assinalando ainda que, “acaso não poderíamos afirmar que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?” Acrescenta o autor que seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira, despendendo nesta muita emoção e que a antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real.

Apesar de toda a emoção com que a criança catexisa seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Para Freud, essa conexão é tudo o que diferencia o “brincar” infantil do “fantasiar”. O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética. A irrealidade do mundo imaginativo do escritor tem consequências importantes para a técnica de sua arte, pois muita coisa que, se fosse real, não causaria prazer, pode proporcioná-lo como jogo de fantasia, e muitos excitamentos que em si são realmente penosos, podem tornar-se uma fonte de prazer para ouvintes e espectadores na representação da obra de um escritor. (FREUD, 1906-1908, p. 149)

Continuando, o autor afirma que existe uma outra circunstância que nos leva a examinar por mais alguns instantes essa posição entre a realidade e o brincar. Quando a criança cresce e, para de brincar, após esforçar-se por algumas décadas para encarar as realidades da vida com a devida serenidade, pode colocar-se numa situação mental em que, mais uma vez, desaparece essa oposição entre o brincar e a realidade. Como adulto, pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância, equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos de criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o intenso prazer proporcionado pelo humor.

Freud nos adverte que ao crescer as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Entretanto, diz ele, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nos fala o autor, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra.

Lembra-nos Freud que as fantasias das pessoas são menos fáceis de observar do que o brincar das crianças. Ele diz que a criança, é verdade, brinca sozinha ou estabelece um sistema fechado com outras crianças, com vistas a um jogo, mas mesmo que não brinque em frente dos adultos não lhes oculta seu brinquedo. Quanto ao adulto, ao contrário, afirma Freud, envergonha-se de suas fantasias, escondendo-as das outras pessoas, todavia, acalenta as suas fantasias como seu bem mais íntimo, e em geral preferiria confessar suas faltas do que confiar a outro suas fantasias. Salienta também o autor que pode acontecer, consequentemente, que a pessoa acredite ser a única a inventar tais fantasias, ignorando que criações desse tipo são bem comuns nas outras pessoas, explicando a diferença entre o comportamento da pessoa que brinca e da que fantasia, ambas explicadas pelos motivos dessas duas atividades, as quais estão subordinadas uma à outra.

Em a Sexualidade Feminina Freud (1927-1931) nos mostra que se pode facilmente observar que em todo campo de experiência mental, não simplesmente no da sexualidade, quando uma criança recebe uma impressão passiva, ela tende a produzir uma reação ativa, tentando fazer ela própria o que acabou de ser feito a ela.

Quando um médico abre a boca de uma criança, apesar da resistência dela, para examinar-lhe a garganta, essa mesma criança, após a partida daquele, brincará de ser médico ela própria e repetirá o ataque com algum irmão ou irmã menor que esteja tão indefeso em suas mãos quanto ela nas do médico (FREUD, 1927-1931, p. 271).

Temos aqui, segundo Freud, uma revolta inequívoca contra a passividade e uma preferência pelo papel ativo. Essa oscilação da passividade à atividade não se realiza com a mesma regularidade ou vigor em todas as crianças; em algumas pode não ocorrer de modo algum. O comportamento de uma criança a esse respeito pode capacitar-nos a tirar conclusões quanto à intensidade relativa da masculinidade e feminilidade que ela apresentará em sua sexualidade.

Sobre nossas primeiras experiências sexuais, ele diz que são sexuais e sexualmente coloridas; que uma criança as têm em relação à mãe e são, naturalmente, de caráter passivo. Ela é amamentada, alimentada, limpa e vestida por esta última, e ensinada a desempenhar todas as suas funções. Uma parte de sua libido continua aferrando-se a essas experiências e desfruta das satisfações a elas relacionadas. Outra parte, porém, esforça-se por transformá-las em atividade. Em primeiro lugar, a amamentação ao seio dá lugar ao sugamento ativo. Quanto às outras experiências, a criança contenta-se em se tornar autossuficiente — isto é, executando com ela própria com sucesso o que até então fora feito para ela —, em repetir suas experiências passivas, sob forma ativa, no brinquedo, ou, então, transforma realmente a mãe em objeto e comporta-se para com ela como sujeito ativo. Freud, porém, insiste em dizer que esse papel ativo exercido pela criança não se realiza no campo da ação real.

Segundo Freud, raramente ouvimos falar numa menina que quer lavar ou vestir sua mãe, ou que lhe diga para efetuar suas funções excretórias. Às vezes, é verdade, ela diz: “Agora vamos brincar de que eu sou a mãe e você é a filha”; geralmente, porém, realiza esses desejos ativos de maneira indireta, em seu brinquedo com a boneca, brinquedo em que representa a mãe, e a boneca a filha.

Freud (1920), em Além do Princípio de Prazer, fala que uma das primeiras atividades normais do aparelho mental é a brincadeira das crianças.

Rodulfo (1990) diz, sobre o brincar da criança, que teremos de renunciar à ideia de encontrá-lo atribuído a uma única função, para ele, nos diferentes momentos da estruturação subjetiva observaremos variantes, transformações, na função do brincar. Ele insiste na importância de dizer “brincar” e “brinquedo”, seguindo a proposta de Winnicott, para acentuar o caráter de prática significante que tem para nós esta função; enquanto o brinquedo remete ao produto de certa atividade, a um produto com determinados conteúdos, a atividade em si deve ser marcada pelo verbo no infinitivo, que indica seu caráter de produção.

Sobre o conceito de brincar, Rodulfo (1990) articula:

Para nós, o conceito de brincar é o fio condutor que podemos tomar, para não nos perdermos na complexa problemática da constituição subjetiva. Partimos de uma descoberta: não há nenhuma atividade significante no desenvolvimento da simbolização da criança que não passe vertebralmente por aquele. Não é uma catarse, entre outra, não é uma atividade a mais, não é um divertimento, nem se limita a uma descarga fantasmática compensatória ou a uma atividade regulada pelas defesas, assim como tampouco se pode reduzi-lo a uma formação do inconsciente: além destas parcialidades, não há nada significativo na estruturação de uma criança que não passe por ali, de modo que é o melhor fio para não se perder. Os conceitos mais abstratos ou genéricos (como o do desejo e tantos outros) que possamos invocar, sejam bem-vindos; porém, onde vou vê-los funcionar, se é que funcionam, onde comprovarei sua pertinência, senão nesta prática, por excelência? Em particular, cada vez que quero avaliar o estado de desenvolvimento simbólico de um menino, não há nenhum índice que forneça mais claramente o seu estado de suas possibilidades quanto ao brincar. (RODULFO, 1990, p. 91)

Menciona o autor citado, que, durante muito tempo, o jogo do for/da, jogo de aparecimento e desaparecimento, ficou consagrado como sendo também a manifestação da atividade lúdica em sua originalidade, ao mesmo tempo que representa a primeira função atribuível ao brinquedo, nada menos que poder simbolizar um desaparecimento, uma perda, dar representação à ausência. Ele diz ter publicado um artigo em 1985, no qual tomou como base certas ideias desenvolvidas pelos Lefort, em El Nascimento Del Outro e impressões extraídas de sua própria experiência, e chegou à conclusão de que existem funções do brincar mais arcaicas, mais decisivas, mais primordiais do que as do for/da. Em sua opinião, a prática clínica impõe a evidência de funções do brincar anteriores àquele, funções que se podem ver desdobrar, em seu estado mais fresco, ao longo do primeiro ano de vida, relativas à constituição libidinal do corpo.

Rodulfo vai mais além quando salienta que, a rigor, Lefort não esteve falando de outra coisa senão da perspectiva do significante do sujeito ao fazer referência à necessidade de extrair materiais para fabricar o corpo, materiais que devem ser arrancados do corpo do Outro.

Desta forma, conforme preconiza Rodolfo as primeiras funções do brincar, tão fundamentais, teriam esse mesmo processo fundante do sujeito. Para ele, a partir do brincar que a criança se presenteia com um corpo apoiado no meio. Desta forma, tudo o que faz ao ambiente possibilita ou abstrói, acelera ou bloqueia, ajuda para a construção ou ajuda para destruição de certos processos do sujeito, mas este não é um eco ou reflexo passivo desse meio, creem as teorias ambientalistas mais (ou menos) ingênuas, senão que, apoiada nas modalidades daquele (fundamentalmente o mito familiar, a estruturação do casal paterno, circulação do desejo) a criança vai produzindo suas diferenças. Ele diz:

Se há uma ideia, ou um preconceito, do qual a psicanálise foi se separando muito energicamente, foi a concepção da criança como passiva, nos primeiros tempos de vida, o célebre “oral passivo” (Abraham), uma especulação não justificada pelos fatos, ideada por analistas que não atendiam crianças, e quando estas não eram atendidas. Com efeito, a ideia de que a criança é passiva, ao mamar, é por si mesma absurda, naquele primeiro nível, porque sabemos que o mamar trabalha para fabricar o leite que é tomado mediante a estimulação das glândulas mamárias (embora seja curioso que a própria ciência que o descobriu costume contribuir para desalentá-lo). De certa forma, o pequeno dá de comer a si mesmo, através da mãe. Por outro lado, nada do que se vê, em psicanálise, avaliza a concepção do infans como ente passivo (RODULFO, 1990, p. 92-93).

Dessa forma, como podemos pensar o espaço — tempo do brincar — no contexto atual de nossa sociedade dita moderna? Já que a vida moderna transformou o “lugar” do brincar bastante limitado e limitante, pois não há espaço para a criatividade e as brincadeiras de expressão livre, no qual o curso da imaginação é o objeto principal da brincadeira, em que a consciência flui rumo a um estado de ser, e em que a aprendizagem e subjetividade se enlaçam dando ao sujeito a autoconsciência.

O brincar de faz-de-conta quase não existe e este faz parte de um passado muito recente — quase que esquecido — que deu lugar aos brinquedos descartáveis, feitos para não mais que algumas horas de existência. Fala-se em jogar via internet, horas intermináveis diante de monitores, teclados, kits multimídias, linhas telefônicas congestionadas, jogos virtuais de guerra disputados com parceiros em outros países dentro de um espaço real de ação limitado a mais ou menos 1,5m (quadrados). E o corpo, que lugar a ele é reservado? Quem lembra dele? E as relações corpo a corpo, olho no olho, diálogo tônico, cumplicidade, por onde andam? Criatividade, espontaneidade, imaginação, brincar de correr, de pular, de escorregar, de construir, desconstruir, reconstruir. Aprender. Dançar, inventar, contar histórias, dramatizar, subir no palco, mesmo que este só exista na minha, na sua, na nossa imaginação. Construir relações sociais, apropriar-se de territórios, conquistar, dividir, socializar. Formular regras e discuti-las, viver o espaço do outro, pedir permissão, permitir-se, ousar ser. Enfim, uma criança, um ser que necessita vivenciar.

Winnicott (1982) diz que as crianças têm prazer em todas as suas experiências de brincadeira física e emocional. O que podemos, segundo ele, é ampliar o âmbito de suas experiências fornecendo materiais e ideias, mas parece ser preferível fornecer essas coisas parcimoniosamente e não de forma excessiva, visto que as crianças são capazes de encontrar objetos e inventar brincadeiras com muita facilidade e isso lhes dá muito prazer.

Como se pode ver, nos tempos de hoje não há muito espaço para as brincadeiras; as crianças ficam aprisionadas na vida real, não existe o faz de conta, e a vida de crianças e adultos parece girar em torno da praticidade imposta pela vida moderna.

Mas o que é o brincar? Ou situando a questão de forma mais direta, como nos diz Winnicott (1982): Por que as Crianças Brincam? Ele assinala que a maioria das pessoas diria que as crianças brincam porque gostam de fazê-lo.

Uma outra questão posta por Winnicott é a de que é comum dizer-se que as crianças “dão escoamento ao ódio e à agressão” através de suas brincadeiras, como se a agressão fosse alguma substância má de que fosse possível uma pessoa se livrar. Ele diz que isso é verdade em parte, porque o ressentimento recalcado e os resultados de experiências coléricas podem ser encarados pela criança como uma coisa má dentro dela. Mas, no entanto, segundo ele, o mais importante é afirmar essa mesma ideia dizendo que a criança aprecia concluir que os impulsos coléricos ou agressivos podem exprimir-se num meio conhecido, sem o retorno do ódio e da violência do meio para ela. Ele vai mais além quando afirma que se deve à presença da agressividade na brincadeira da criança, e esta se sente desonesta se o que está presente tiver que ser escondido ou negado. Ele nos esclarece sobre os sentidos e os limites estruturantes da agressão:

A agressão pode ser agradável, mas acarreta inevitavelmente o dano real ou imaginário de alguém, de modo que a criança não pode evitar ter de fazer frente a essa complicação. Até certa medida, isso é conseguido na origem, ao aceitar a criança a disciplina de exprimir o sentimento agressivo sob a forma de brincadeira e não apenas quando está zangada. Outro processo é usar a agressividade numa forma de atividade que tenha uma finalidade básica objetiva. Mas essas coisas só se conseguem gradativamente. Compete-nos não ignorar a contribuição social feita pela criança ao exprimir seus sentimentos agressivos através das brincadeiras, em lugar de o fazer em momentos de raiva. Poderemos não gostar de ser odiados ou feridos, mas não devemos ignorar o que está subentendido na autodisciplina, relativamente aos impulsos coléricos. (WINNICOTT, 1982, p. 162).

Segundo Winnicott (1982, p. 162), é fácil perceber que as crianças brincam por prazer, e se torna difícil para as pessoas admitirem que, quando as crianças brincam, elas o fazem para dominar suas angústias, controlar ideias ou impulsos que conduzem à angústia se porventura estes não forem dominados. A angústia, desta forma, para o autor, será sempre um fator que entra na brincadeira da criança como algo dominante e quando a angústia se torna excessiva conduz a brincadeira da criança de forma compulsiva, ou pelas brincadeiras repetitivas, ou pela busca exagerada dos prazeres que pertencem à brincadeira; e se a angústia for muito intensa, a brincadeira resulta em uma situação de pura exploração da gratificação sensual. O resultado prático dessa experiência, comenta Winnicott, é que quando as crianças brincam por prazer, pode-se lhes pedir que elas parem de brincar, ao passo que a brincadeira em que lidam com esses sentimentos de angústia ou ansiedade não se pode desviar dela as crianças sem lhes causar aflição, angústia real, ou novas defesas (tais como a masturbação ou a divagação).

Desta forma, é através da brincadeira que a criança adquire experiência. As experiências tanto internas como externas podem ser férteis para o adulto, diz Winnicott (1982), mas para a criança essa riqueza encontra-se principalmente na brincadeira e na fantasia. Da mesma forma que a personalidade dos adultos se desenvolve através de suas experiências da vida, as das crianças evoluem por intermédio de suas próprias brincadeiras e das invenções de brincadeiras feitas por outras crianças e por adultos. Desta maneira, num constante enriquecimento, através das experiências do brincar, as crianças ampliam de forma gradativa sua capacidade de dar outros sentidos à riqueza do mundo externamente real. A brincadeira torna-se a capacidade criadora, que, no dizer de Winnicott, se traduz por experiência. Ele diz:

Os adultos contribuem, nesse ponto, pelo reconhecimento do grande lugar que cabe à brincadeira e pelo ensino de brincadeiras tradicionais, mas sem obstruir nem adulterar a iniciativa própria da criança (WINNICOTT, 1982, p.163).

Rodulfo (1990) insiste em fazer uma diferenciação na observação feita por Winnicott de que brinquedo é diferente de brincar. Para Rodulfo, a proposta de Winnicott acentua o caráter significante que ele dá a essa função; ele diz que enquanto o brinquedo remete ao produto de certa atividade, a um produto com determinados conteúdos, a atividade em si deve ser marcada pelo verbo no infinitivo, que indica seu caráter de produção.

Todo o conteúdo exposto acima teve como objetivo mostrar a importância que tem o jogo espontâneo para a construção subjetiva da criança, bem como verificar sua relevância como elemento na constituição da função psicomotora, ou seja, é através do brincar que a criança pode se apropriar de uma imagem de si, da relação estabelecida primeiramente como objeto de brincadeira do outro (desejo do outro — assujeitado), para depois constituir-se como objeto desejante (sujeito da falta); nesse percurso é que surgem e operam as funções psicomotoras e seus distúrbios.

Cohen Pinto, citando Lacan, aponta para a mesma importância que esse dá ao ato do brincar na constituição subjetiva do sujeito. Mostra a existência de três atos de brincar que permitiriam a constituição dos registros do imaginário, real e simbólico. Ela comenta:

Tentando-se encontrar no ato de brincar os três registros da inscrição do homem segundo Lacan, e inferindo-se que existem formas possíveis de escrevê-lo, arisca-se dizer que é possível cingi-lo por meio: do registro simbólico, onde o brincar e o brinquedo são representantes da malha discursiva, do registro imaginário, onde o corpo da criança e do adulto, em sua materialidade, serve assim como brinquedo, para ocupar espaços da fantasia, e do registro do real, que comparece no não-dito, naquilo que escapa e que é característico do material inconsciente. Essa forma sintética de explicitar os três tipos de inscrição do brincar, entretanto, não esgota a ação humana em sua imensa plasticidade e multiplicidade de produções. (COHEN PINTO, 2000, p. 43).

Nossa conclusão fica por conta da importância dada ao jogo dentro da psicomotricidade e sua especificidade, pois a ótica psicomotora que envolve a estrutura e o desenvolvimento denota, por um lado, o concernente à constituição subjetiva de um sujeito e da superfície de seu corpo e, por outro lado, o que concerne à construção dessa superfície e seu funcionamento.

Levin (1995) vai na mesma direção ao afirmar que a especificidade do campo psicomotor centra sua ótica e opera, nesse singular ponto de encontro, entre a imagem de movimento e o projeto motor, o eixo do corpo e a representação, entre a postura e a posição subjetiva, entre a mecânica motora e o gesto significante.

Desta forma, nos parece difícil pensar em uma técnica no sentido global, ou em sentido geral; o que existe, como no dizer de Levin, é uma técnica psicomotora que enfoca o sujeito singular de acordo com uma tática singular que remete para um sentido numa determinada direção da cura.

Levin reforça ainda mais essa ideia, dizendo que para que um sujeito - criança possa mover-se será necessário que alcance o saber de seu corpo e sua representação a nível simbólico. Nesse sentido, nos parece impensável a aplicação de qualquer técnica dentro de um projeto psicomotor que não se imponha o jogo como elemento central, como possibilidade de a criança situar-se através do jogo no mundo das representações, no mundo do simbólico. Como no dizer de Vygostsky, “Através da ação se produz significação e através da significação se produz ação” (VYGOSTSKY apud HEINSIUS, 2000, p. 29).

Portanto, a dinâmica do jogar nos coloca frente a uma dimensão de poder vivenciar de forma singular o jogar, dentro da intervenção psicomotora, e os processos rumo à subjetividade, graças ao caráter simbólico posto no ato do jogar. Essa dialética do brincar em ato permite, no nosso entender, ampliar o conceito de intervenção clínica, que não só deverá situar-se no corpo enquanto órgão, nem poderá se limitar unicamente ao campo da linguagem verbal, mas que tenha a dimensão de que o corpo de um sujeito está inserido na linguagem, que o corpo de um sujeito é linguagem, portanto é um dizer, e comunica-se dialeticamente como expressão simbólica, nos envia numa dimensão dialética entre o passado e o presente e nos projeta no futuro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. ALTMAN, Raquel Zumbano. Brincando na História. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História Das Crianças no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 1999.

  2. COHEN PINTO, Helena Ruth. O “Saber-Fazer” com o Brincar. In: MATTOS FERREIRA, Carlos Alberto (org.). Psicomotricidade: da educação infantil à gerontologia. São Paulo: Lovise, 2000.

  3. FREUD, Sigmund. Os Chistes e sua relação com o Inconsciente. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 1905.

  4. FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneios. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 1906-1908.

  5. FREUD, Sigmund. Animismo, Magia e Onipotência de Pensamentos. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 1913-1914.

  6. FREUD, Sigmund. Sexualidade Feminina. Edição Eletrônica das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 1927-1931.

  7. HEINSIUS, Ana Maria. As ideias de Vygotsky e os Contextos de Ensino. In: MATTOS FERREIRA, Carlos Alberto (org.). Psicomotricidade: da educação infantil à gerontologia. São Paulo: Lovise, 2000.

  8. LEVIN, Esteban. A especificidade da Clínica Psicomotora. In: SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOMOTRICIDADE – Anais do VI Congresso Brasileiro de Psicomotricidade —III Encontro de Profissionais de Psicomotricidade. Rio de Janeiro: Memórias futuras, 1995.

  9. RODULFO, Ricardo. O brincar e o Significante — um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

  10. WINNICOTT, Donald Woods. A Criança e o Seu Mundo. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982. 270 p.

 

SOBRE O AUTOR

Nivaldo Torres Psicólogo, pós-graduado em Especialização na Prática Clínica Psicanalítica- Autismo e Psicose infantil; Especialização em Psicomotricidade Relacional formado por André Lapierre e Anne Lapierre; Psicomotricista especialista titulado pela Associação Brasileira de Psicomotricidade (ABP). Presidente da ABP capitulo Pernanbuco; Formado pelo CESIR - Centro de Estudos Simonne Ramain. Ministra disciplinas em varias formações e pós-graduações no Brasil.


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