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Relaxação terapêutica na criança: Método Bergès-Bounes


Por Vera Mattos


A relaxação é, essencialmente, uma experiência pessoal que tem como implicação o corpo. É, sob diversas formas, uma técnica utilizada por inúmeros especialistas (psicomotricistas, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psicólogos, psicanalistas, professores, professores de educação física, terapeutas ocupacionais), a partir do momento em que a expressão e a comunicação, verbal ou não, entram em cena. A utilização desta técnica é mais frequente em crianças a partir de 5 anos, embora possa ser utilizada em crianças menores. Porém, nestas últimas, a relaxação entra de forma adaptada, sucinta e lúdica.

Costuma-se usar o termo relaxamento para todo e qualquer recurso de modificação tônico-postural. No entanto, o termo correto para denominar as técnicas que promovem essas modificações é o termo relaxação (ação de relaxar). Já, o termo relaxamento deveria ser utilizado para definir o estado que o sujeito atinge quando submetido a qualquer técnica de relaxação.

Uma vez que temos como objeto de estudo o corpo do sujeito torna-se importante refletirmos sobre este corpo, saber de que corpo falamos. Nosso objeto de estudo é o corpo de um sujeito - um corpo que funciona de forma particular, singular, caracterizado pela subjetividade.


Podemos prolongar esta investigação pensando a questão do próprio corpo e a questão do corpo próprio. Que diferença conseguiríamos estabelecer entre estas duas expressões? O próprio corpo é nosso organismo enquanto conjunto de funções, comum a toda a espécie humana, no entanto podemos ou não ter a consciência do espaço que este ocupa e de sua forma de funcionar nas relações que estabelece com o mundo. E o que entendemos por corpo próprio? O corpo próprio é aquele do qual somos proprietários!!! Do qual tomamos posse. Aquele que reconhecemos como nosso e que somos capazes de interpretar sob as mais diversas formas de representação. Um corpo construído a partir das relações estabelecidas através do sensorial, das inscrições feitas pelo Outro (linguagem) e das novas experiências que proporcionam as infinitas representações.

É então, o corpo do sujeito que propomos estudar ao pensarmos as técnicas de relaxação.


A relaxação terapêutica na criança de Bergès-Bounes tem sua metodologia de trabalho fundamentada nos estudos de SCHÜLTZ, que vê a relaxação não como educação, reeducação ou pedagogia, mas sim como uma maneira original de interrogar o corpo, cujas inibições e impossibilidades de comunicação tornam por vezes difícil a psicoterapia verbal

“O fundamento do método consiste em produzir uma transformação geral do indivíduo de experimentação, por determinados exercícios fisiológico-racionais, e que em analogia com as mais antigas práticas hipnótico-mágicas, permitem todos os benefícios que são capazes de produzir os estados sugestivos autênticos ou puros.” (SCULTZ, 1967 p.27).

O método Bergès-Bounes trata-se de uma técnica utilizada com crianças e que vê o corpo como uma unidade, não como a parte portadora do sintoma. A proposta é a de uma modificação progressiva entre a relação do corpo e o meio ambiente, e entre as emoções e as respostas que o corpo lhes dá. O importante não é conseguir relaxar, mas estar presente naquilo que se passa durante o tempo em que se tenta relaxar. Não são os efeitos o que esperamos. O que propomos à criança é a escuta do seu corpo num lugar, onde a criança possa dizer EU. Dar autonomia ao corpo, dissociando-se da mãe e da família, para que a criança tome seu lugar na linhagem familiar e na sociedade.


Os objetivos da relaxação vão de encontro aos objetivos da Psicomotricidade, enquanto ciência, que são: - dar um corpo, por intermédio do trabalho voltado para a percepção e para o movimento; - dar um lugar ao corpo, uma presença, permitir à criança ser o ATOR, e não simplesmente o NARRADOR de sua história. Pela Psicomotricidade proporcionamos a experiência do espaço à criança, e o objetivo desta experiência é o de oferecer a ela um lugar, lugar este que ela vai ocupar em relação aos outros. É nesta medida que se torna fundamental que o terapeuta se mantenha em seu lugar, cuidando para não ser demasiadamente maternal ou rígido. Enfim, ocupar o seu lugar que será, aí, o lugar do outro.


Para WALLON a função tônica não é somente um fundo. Ela é sobretudo o campo de flutuação oscilante entre os estados de tensão e relaxamento, organicamente ligada às relações que a criança estabelece com o mundo exterior. Para este autor, o tônus é a primeira forma de relação com o mundo.

A relaxação vai possibilitar à criança uma experiência tônica diferente, proporcionando a conquista, parte por parte, do seu corpo, de um novo estado tônico que, sem dúvida, por seu caráter topográfico, resultará numa forma de viver o espaço. Na relaxação o sujeito é convidado a experimentar uma diferenciação entre as funções tônica e motora. A busca das áreas que separam o estado de tensão e de relax é a parte motora desta experiência. Os momentos de mobilização (passiva) e os de retomada (ativa) reforçam a integração tônico-motora.


Nesta experiência vivencial a função tônica é lentamente explorada, experimentada, nas condições privilegiadas da terapia. A flutuação tônica está intimamente ligada à presença, proximidade, distanciamento e intervenção do terapeuta.


Nessa relação o terapeuta não é apenas aquele que sugere uma mudança através das palavras, das imagens repetidas e do toque referência, acompanhando e facilitando uma modificação do tônus, ele é, sobretudo, a testemunha de todo um processo de transformação na vivência tônica.


Os objetivos principais são:

  • Sensibilizar o campo de atuação essencial que é o Tônus.

  • Promover a modificação tônica, ocasionando uma transformação no tônus de ação, que é exigido no movimento.

  • Trabalhar de forma segmentária e cumulativa, explorando os segmentos corporais até atingir a unidade corpórea.

  • Diferenciar as vivências da função tônica e da função motora


Figura 1: Esquema do autor

Não há função motora que não dependa da função tônica, no entanto, podemos ter flutuação tônica sem a presença da função motora, sem motricidade.


A relaxação age, então, inicialmente, sobre a motilidade e a possibilidade da motricidade. É através da consciência topográfica das partes do corpo, da consciência das sensações corpóreas, das articulações mobilizadas pelo terapeuta, da retomada do tônus de vigília, que o sujeito vai alcançar a produção do movimento. Não ao movimento estereotipado, mas, sim, ao movimento carregado de desejo, um movimento no qual estará contido todo um ser.


Esta exploração dos segmentos corporais até atingir a globalidade, a unidade corpórea, auxilia na conquista do corpo próprio. Inicialmente há um aspecto cognitivo em questão que seria o mapeamento desse corpo. As relações espaciais entre os diversos seguimentos do corpo vão se estabelecendo e poderíamos observar essas relações através das modificações tônicas locais; das mudanças de posições durante as sessões; das referências articulares e musculares durante a mobilização.


Começamos a sessão com a indução verbal – “busque dentro de você uma imagem de calma e segurança” na intenção de levar o sujeito a um contato consigo e seu imaginário. Na sequência, avisamos ao sujeito que iremos tocar seu corpo e pedimos que tente não nos ajudar com nenhum movimento.


O momento de tocar o corpo do outro é extremamente impactante e merece nossa atenção, pois, o toque (que deve ser o mais neutro possível), vai propiciar uma consciência progressiva do que poderíamos chamar de envelope do corpo, ou fronteira. Através deste contato o indivíduo vai experimentar o seu limite, sua dimensão.


Ao toque segue-se com a mobilização das articulações do segmento em questão que, por sua vez, vai possibilitar a percepção dos segmentos e suas conexões, continuidades e levará, pouco a pouco, a uma descoberta topográfica do corpo. No trabalho sobre as articulações temos dois processos de grande importância, a saber: a representação e a nomeação.


A representação surge da relação que se estabelece entre o que é SENTIDO + REPRESENTADO + SUGERIDO. Esta é um fator capital para a formação da imagem do corpo. A representação constitui o controle entre a percepção e o fantasma. A indução verbal do terapeuta busca integrar as imagens de cada parte do corpo, possibilitando um reconhecimento, uma redescoberta. Através destas imagens torna-se possível a representação, ultrapassa-se o limite do proibido, tornam-se precisos os pontos e as fronteiras.


A nomeação de cada parte do corpo vai autenticar, qualificar e precisar esta descoberta. Leva também o indivíduo a um aumento de vocabulário e à cognição espacial do corpo. Trata-se de uma verdadeira construção do esquema corporal, um processo somatognósico, que nos leva à imagem corporal pela união da representação, sensação e nomeação. O processo dinâmico da sessão vem VESTIR o corpo, investir nele com aquilo que é sentido.


Durante a sessão a imagem corporal é implicada, o esquema espacial surge para referenciar o sujeito, através da demarcação topográfica e da nomeação, possibilitando a constituição de um todo. Um corpo descoberto através do contraste daquilo que é conhecido versus o desconhecido.


Para ilustrar brevemente os efeitos desta abordagem metodológica apresentaremos um caso clínico que teve seu início em uma abordagem grupal e evoluiu para uma intervenção individual.


Apresentamos o Igor um menino de 9 anos que nos foi indicado pelo neuropediatra e pela escola, com a queixa inicial de falta de atenção e o diagnóstico de TDA-H (F90.0). Após avaliação foi sugerido a Igor o grupo onde havia 3 outros meninos (8, 9 e 10 anos) que chamaremos de A, B e C, dois deles com o mesmo diagnóstico e o terceiro com suspeita apenas. A proposta terapêutica era de encontros semanais de 1 hora – 30 minutos dedicados à relaxação e 30 minutos para atividades de expressão. Os demais membros do grupo estavam cada um em seu estágio na técnica, a saber o A na respiração, o B também e o C na perna esquerda. Igor entrou tímido no grupo, escolheu um canto da sala para estender seu tapete e enquanto o terapeuta tocava o A e o B (que já conseguiam ficar deitados por alguns momentos), ele e o C assistiam sentados ou passeando pela sala.


Figura 2: Desenho de si em nosso primeiro encontro

No grupo, Igor faz bagunça, esfrega os olhos sem parar, não consegue fechá-los - me pede um lenço para vendar os olhos. Passa a usar a máscara. o menino C se torna um parceiro no grupo e os dois não conseguem parar, riem, encarnam no outro menino... enfim... TUDO... Menos RELAXAR!!!!! Só era possível para Igor parar na hora em que o terapeuta se aproximava para tocá-lo. Aí sim, se deitava e aguardava o toque, porém, assim que o toque era finalizado, Igor se sentava de novo, ria, conversava com C que também só se deitava quando ia ser tocado, no entanto, após o toque, C já permanecia deitado por alguns minutos, como se o toque lhe houvesse dado novas informações sobre seu segmento corporal, mas era interrompido por Igor em sua reflexão.


Após algumas sessões onde essa dinâmica não mudava, a terapeuta propõe que um faça no outro as manipulações (nomeação e mobilização das articulações) do estágio onde estão, isto é, A tocaria B em seu estágio, B tocaria C em seu estágio e C tocaria o corpo de Igor que, por sua vez, tocaria o corpo de A. A proposta foi um tremendo sucesso!!! Todos ficaram atentos e extremamente cuidadosos um com o outro! As sessões seguintes passaram a ter nova dinâmica e Igor dispensa a máscara dos olhos. O menino A já estava terminando seu acompanhamento em relaxação e deixaria o grupo. Aqui é importante retomar a noção de grupo aberto que nos trazem os autores do método:

[...]" não há nenhuma sugestão idêntica para o grupo todo, e as indicações ditas pelo terapeuta não se fazem de forma coletiva, mas, sim, individualmente em voz baixa" (BERGÈS-BOUNES, 2008 p.15)

Figura 3: Grupo de relaxação

Em seu feedback Igor nos diz: “consigo ficar quietinho até adormecer” e que tem dormido melhor. “Acordo feliz”. Essa devolução ocorre quando havíamos tido 2 sessões de respiração – nos parece importante ressaltar que após a primeira sessão do estágio da respiração, o que vai ser evocado é o ritmo e a qualidade desse ritmo e é nessa hora que Igor consegue reduzir sua “aceleração” para dormir melhor.


Nosso grupo, por ser aberto, foi se esvaziando, uma vez que A e B já haviam terminado seus processos. Foi feita a proposta a C e a Igor de seguirem em intervenção individual, proposta aceita por ambos.


Na primeira sessão individual, Igor passa a usar o cobertor e diz: “Você só pode tocar as partes que eu deixar de fora”. Mas sem deixar parte alguma de fora. É sua 4 sessão de respiração e ele coloca as mãos sobre o ventre (sempre debaixo do tecido) e força bastante sua inspiração e sua expiração, dando-me a ver esse movimento de encher e esvaziar seu corpo de ar.



Figura 4: Igor em processo de relaxação

O que Igor me diz com isso? Como será que ele vive seu corpo nessa hora? A representação gráfica pode nos dar uma ideia desse vivido corporal!



Figura 5: desenho na terceira sessão individual (4 meses após o início da intervenção)

Nesse processo, o corpo é reconhecido pelo terapeuta e, assim, possibilita à criança identificá-lo como SEU.


Para Igor as descobertas sobre seu corpo, seu ritmo, seu lugar no grupo lhe trouxeram uma nova forma de estar no mundo, em casa, na escola, ele tem buscado se concentrar mais, a dose de medicação (ritalina) foi drasticamente reduzida – o que deu a Igor uma melhor autoestima e maior segurança no uso de seu corpo nas relações com o espaço, o outro e, sobretudo, consigo mesmo.

É nos limites desta armadura cognitiva que o processo dinâmico da sessão vem “vestir” o corpo, investir nele com aquilo que é sentido. O dinamismo está no processo de passagem que se produz entre o conhecimento espacial e verbal da superfície e sua espessura, é o funcionamento interno (articulações e respiração); do outro lado, há o exterior (o terapeuta com seu corpo, seu ritmo, sua voz).


As práticas terapêuticas beneficiam-se enormemente desta técnica, utilizando-a como facilitadora nos aspectos temporal e espacial. O sujeito, através da relaxação, vai descobrir seu próprio ritmo, contrastando-o com o ritmo do mundo externo e vai tomar consciência da dimensão do espaço que ocupa, do seu lugar, que é, primeiramente, o seu corpo.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Bergès, J. e Bounes,M. – La Relaxation thérapeutique chez l’enfant. Paris: Ed. Masson; 2008.

  • Schultz, J.H. – O treinamento autógeno, ed. Mestre Jou, SP,1967

 
Vera Mattos Fonoaudióloga e psicomotricista com especialização em Psicomotricidade em Paris. Mestre em Psicologia Social. Doutora em Fonoaudiologia. Sócia Titular da Associação Brasileira de Psicomotricidade (ABP). Diretora do Mobile - Centro Integrado de Desenvolvimento Infantil.


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