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O pop up(ing)do sujeito: o que o pai tem a ver com o Isso?

Por Anabel Guillen e Maria Luísa Inguaggiato


A clínica com crianças nos leva ao exercício interdisciplinar. Articularemos questões que abrangem a clinica psicomotora e a psicanalítica, ambas entrelaçadas em uma função transdisciplinar. Com isso queremos dizer que tomaremos a psicanálise como o eixo transdisciplinar que conduzirá a direção do tratamento. As reflexões e articulações teóricas apontadas neste texto, serão costuradas a partir de um caso clínico. Este caso em questão nos levará a pensar sobre os efeitos do declínio do patriarcado na legitimidade e consequentemente no exercício da autoridade paterna e suas repercussões na organização psicomotora da criança.


Lebrun (2008) em seu livro "O futuro do ódio" coloca que é a posição de ‘Terceiro’ que garante a instalação da realidade psíquica do sujeito, na medida em que sustenta uma posição de exterioridade no discurso do Outro, quando produz o significante da falta – o falo. Para falar do ‘Terceiro’ com letra maiúscula, dito de outra forma, para que o pai possa ocupar o lugar de ‘Terceiridade’ se faz essencial que o mesmo possa sustentar uma fala própria, mantendo sua palavra do próprio lugar, obtendo assim, a dimensão de exterioridade aos sujeitos.


Ainda que Lebrun (2008; 88) coloque que, por um lado, este Terceironão precisa da legitimidade que procurava no patriarcado para sustentar essa função de mediação" por outro lado, nos aponta:


"se, ontem, o pai na família, por exemplo, podia espontaneamente assentar sua legitimidade na existência de um Terceiro, hoje ele se encontra forçado a não mais poder apoiar a sua intervenção, senão sobre si mesmo. Não há duvida de que isto provoca uma dificuldade diante da qual o pai renuncia, ou, ao contrário, torna-se autoritário" (Lebrun; 2008; 91)


Nosso paciente, ao qual vamos nos referir como S, é uma criança que vem encaminhado pela escola, para uma avaliação psicomotora por apresentar uma hipercinesia que dificulta sua adaptação à mesma. S demonstra uma imaturidade no seu esquema corporal pois a forma, como dá a ver seus movimentos, seus deslocamentos, sua tonicidade, sua organização espaço-tempo, é confusa e desajustada. Apresenta uma instabilidade psicomotora em seu brincar, tornando-se ainda mais desorganizado, quando na execução e no planejamento motor de suas ações, não consegue ser bem sucedido. Por não encontrar palavras para dar conta “d-isso” e a pulsão não encontrar uma representação, é tomado por um movimento, que poderíamos vê-lo de uma forma estereotipada. Sai circulando pelo espaço, enquanto realiza um movimento que poderíamos descrever como chacoalhando os membros superiores ao mesmo tempo que projeta a língua para fora.


O que S quer nos falar com esta forma de manifestação psicomotora?


Nas primeiras entrevistas com os pais, a mãe se diz preocupada colocando-se como incapaz de sustentar a posição materna necessária a organização e funcionamento corporal de seu filho: <<este menino é ligado na tomada 220W. Não brinca com ninguém. Não sei o que ele tem. Não para quieto, não se concentra, não sei o que fazer. Não tenho tempo e ninguém da família para me ajudar, pois minha família é de fora>>. Sua profissão implica um período de trabalho intenso. Chama-me a atenção que a desorganização espaço-tempo da mãe também faz-se presente em seu discurso. Examino que os cuidados primordiais ficaram e seguem delegados a secretarias e ao pai, que por ter maior possibilidade de remanejar seus horários e desempenhar seu trabalho em casa, acaba exercendo esta posição para S e irmãos mais novos.


Vale acrescentar, ainda, que a mãe menciona sobre um parente com problemas psiquiátricos e se interroga se S também poderia apresentar sintomas desta natureza. Algo se coloca, a partir desta fala, sobre a fantasmática materna.


Bergés (2008;49) nos coloca em seu Livro: “O corpo da neurologia e a psicanálise” que o posição materna é "o lugar de função, suporte do funcionamento em relação à imaturidade da criança". E mais ainda “O funcionamento corporal da criança é sempre uma antecipação em relação as funções da mãe”(Bergés; 2008; 153). Desta forma, para que o funcionamento corporal ultrapasse o funcionamento orgânico é preciso que o funcionamento esteja agarrado ao significante.


Ao falar sobre o pai de S, o qual tem o mesmo nome do filho, a mãe relata que o marido tem dificuldade de lidar com o mesmo. Afirma que não sabe dar-lhe limites e pontua: <<os pais dele se separaram quando ele nasceu e o pai dele abandonou a família. Ele não sabe como ser pai >> E complementa: meu filho me diz: você é que manda em casa>>


O discurso paterno ratifica o comentário materno e acrescenta: << estou aprendendo com meu filho. Não tenho referência do que é ser pai >>


Parece-me que há uma colagem dos discursos e como nos pontua Lebrun a “posição de mediação só pode ocupar um lugar de Terceiridade se obtiver uma posição que ultrapasse cada um dos interlocutores” (Lebrun; 2008; 73).


Nas sessões de psicomotricidade, S constrói um cenário psicomotor que se repete durante varias sessões. Propõe que brinquemos de transformers. Nesses momento ele fala: << eu não consigo fazer nada. ninguém que ser meu amigo. Não sei jogar bola. Mas... vamos brincar de transformers?>> Expressa, ainda, ter questões com sua aparência e não se identifica com seu nome: << não gosto de usar óculos, sou baixinho. Não gosto do meu nome. Vamos brincar de transformers? >>


Neste cenário, instala-se uma demanda de que sua corporeidade seja nomeada, transformada para além da fantasmática materna. Assim, precisa vincular sua imagem corporal, em um outro registro, capaz de garantir suas possibilidades psicomotoras.


O jogo psicomotor inicia-se, então, a partir de materiais de encaixe, os quais são transformados em vários outros objetos como tanques de guerra, super helicópteros, super-robôs. Há sempre algo de superlativo em seu brincar, como se o ‘super’ pudesse dar conta de sua sustentação corporal. Utiliza objetos, mas muito pouco sua corporeidade como forma de dar evasão ao seu imaginário. Parece que ele pouco habita seu corpo. Sai rodando pela sala, capturado em sua forma estereotipada de movimentar-se, com os objetos criados. Aos poucos, vou intervindo de forma que comece a expressar sua corporeidade neste brincar de transformers. Ele mesmo passa a ser o transformer, transformando-se em um super-robô para derrotar o inimigo, ao qual estou corporificada. Claro que seu brincar está sustentado por um registro imaginário amplificado, pois não encontra o significante nome-do-paipara tirá-lo deste registro e apoiá-lo em outras produções. Esta cena se repete nas sessões como uma forma de encontrar saídas do atolamento no imaginário, como nos diz Lebrun (2004; 115) em “Um Mundo sem limites”:


“o amor materno deixa o sujeito preso de um reconhecimento regulado exclusivamente por uma reciprocidade imaginaria (...) obrigando o sujeito a ler-se no outro, incapaz de suportar a perda deste aval por falta de dispor de um outro registro que pudesse lhe garantir a sobrevivência na ausência deste apoio”.


S está preso nesta rede imaginária, onde só pode ter uma posição fálica, a partir da aniquilação do outro imaginário. Parece-me que brincar de transformers é a possibilidade imaginaria para dizer como sua estrutura simbólica está se articulando. Está atolado na fantasmática materna pelo discurso do Outro como <<aquele que pode ser maluco>>.


Pensando na sua forma estereotipada de movimentar-se, lembramos de Bergès, quando este nos aponta que o importante é que haja o afastamento entre a função e o funcionamento corporal. "Se o funcionamento se confunde com a função, a letra vem colabar ao corpo” (Bergés; 2008; 169). E como coloca Jerusalinsk (2001), no seminário I, a letra permite ir buscar um objeto sem saber previamente o que ele é, mas, para que isto ocorra, é preciso ter uma representação suficientemente distante do objeto em si. Para que a letra tenha valor significante é preciso que a posição da mãe faça enigma da letra, ou seja, “transformar imagens numa ordem significante e que estas imagens não sejam decifráveis nelas mesmas, mas sim na instância da linguagem”. Há que existir um furo na imagem. Logo, parece-me que a imagem corporal de S fica submetida a uma forma de funcionamento endereçada a fantasmática materna. "se a mãe não faz da letra enigma, a criança se liga a letra como real". Para que letra não fique colabada ao corpo é preciso encontrar a alteridade que autoriza uma outra forma de gozar, ou seja, sair do gozo do objeto para o gozo fálico. Como fica então para S, se o pai não garante o lugar de Terceiro no discurso materno? Vamos brincar de transformers?


Para que o trabalho psicomotor pudesse avançar, identifico a necessidade de uma intervenção psicanalítica, pois identifico questões relacionadas à estruturação psíquica implicadas no funcionamento psicomotor de S, desta forma, sugiro o atendimento psicanalítico de forma interdisciplinar.


Ao iniciar sua análise, S se mostrava bastante agitado, falando ao mesmo tempo em que circulava pelo consultório. Curioso queria ver tudo que havia no mesmo, mas não se detinha em nenhum objeto. Era difícil estabelecer um diálogo com ele. Na maior parte do tempo, ignorava o que lhe era perguntado, centrando sua fala apenas no que lhe interessava saber ou dizer.


Cheio de idéias , não conseguia colocá-las em prática, pois mal sugeria algo, mudava seu interesse. Até que em dado momento, percebeu objetos de argila feitos por outro paciente e, a partir dessa referência, passou a tentar fazer vasos. O primeiro foi dedicado à sua mãe.


Devido à sua desorganização psicomotora, era muito desafiador para S realizar atividades como modelar, recortar, colar, etc. Assim, tentava constantemente, frente à sua dificuldade, convencer-me a fazê-las por ele. Com frequência, ficava impaciente e, então, voltava a circular pela sala e a apresentar a estereotipia descrita anteriormente. Não raras vezes era necessário recorrer a limites concretos, pois costumava subir nos móveis ou tentar pendurar-se na janela, colocando seu corpo em risco, sendo que a palavra por si só, não lhe provocava efeito.


Alguns vasos, por fim, ganharam forma e S concluiu que quando crescesse queria ser “um fazedor de vasos”. Vale ressaltar, entretanto, que o “fazer vasos” consistia em fazer buracos na argila, dando-lhe contorno.


Lebrun (2010; 83/84) em ‘O Mal-Estar na Subjetivação’ ressalta que:


“[...] a especificidade do Nome- do- Pai é de ter duas faces. [...] De um lado, ele constitui ponto fixo, tampão, consistência a partir da qual a história do sujeito começa, ele oculta o furo implicado pela linguagem; de outro lado, ele é esse furo em ato, ele é seu revelador”.


Portanto, o Nome-do-Pai implica o furo, o vazio a partir do qual se organiza, se sustenta a enunciação do sujeito. Desse modo, frente a um processo de subjetivação, marcado pela inconsistência do significante Nome-do-Pai, o que era possível a S, senão fazer buracos no real da matéria? Pois, ainda de acordo com Lebrun (2010;82):



“se não há nenhuma ancoragem significante que seja capaz de sustentar o trajeto do sujeito, a falta a ser e o desejar são substituídos pelo fazer e agir.”


Depois de algumas sessões dedicadas à produção de vasos, S passou a demandar brincar com jogos. Nesta nova atividade, também ficou evidente sua dificuldade em executar procedimentos, em seguir regras e em sustentar o jogo, desistindo ao primeiro sinal de derrota. Acontecia, então, da hipercinesia e da estereotipia se apresentarem como efeitos da confrontação com o Outro.


Vale acrescentar, ainda, que quando comentava algo que não dizia respeito ao que estava realizando no momento, geralmente queixas referentes a algum colega ou as tarefas da escola, negava-se a discorrer sobre tais assuntos, diante de solicitação para fazê-lo, gritando que não queria falar sobre os mesmos, recusando-se, assim, a ocupar uma posição de ser falante, focando-se apenas no seu fazer.


Enfim, seja porque ficasse excitado com alguma atividade que propunha, seja porque se irritasse com algo que não saía como planejara, ou ainda, porque se recusasse a falar sobre algo que o incomodava, voltava a dar voltas pela sala e a colocar as mãos e a língua para a frente, justamente aquelas partes do seu corpo que não dava conta de organizar, a fim de fazê-las funcionar em prol de seus intentos. Ou seja, puro real, sem mediação do simbólico: a mão é apenas uma mão e a língua apenas uma língua. A pulsão, mais uma vez prevalecia, em detrimento da palavra.


Num dado momento da analise, empolgado com a mudança de sua família para outro endereço, passa a propor a confecção de maquetes que representassem sua nova morada. Traz, então, folderes com fotos e informações sobre o mesmo, bem como de outros empreendimentos imobiliários, com a intenção de construí-los.


Vale ressaltar que até esse momento, S não se referira ao pai ao longo das sessões. Já a alusão a uma mulher, vez que outra surgia nas brincadeiras. Geralmente transformava uma peça de jogo numa personagem feminina, sempre “linda”, “cheirosa”, “maravilhosa”, acompanhando com comentários do tipo: <<<Ela quer casar com o homem pra dominar ele e depois mandar seus amigos para o espaço>>>; ou, <<A rainha-mãe não vai gostar nem um pouco de que estejam caçando seus filhotes>>. Nesse momento, dizia ser participante da QUEEN, sua banda preferida, e cantava estrofes de suas músicas, enquanto desenhava ou pintava. Falas, enfim, que permitiam entrever que era a mãe quem regia a dinâmica familiar e que S, supostamente estaria submetido a um processo de simbolização, segundo Lebrun (2010; 109-110), organizado unicamente pela mãe.


Inclusive, acontecia de referir-se a si próprio como sendo “maluco”, evidenciando estar aprisionado ao fantasma da mãe, ou seja, de que o filho teria a mesma patologia do parente da família, o que determinaria, a hipercinesia, a estereotipia e a dificuldade de socialização. Ela irá procurar na ciência, mais precisamente num diagnóstico psiquiátrico, a confirmação para a sua suspeita, até hoje não confirmada, apesar dos vários médicos pelos quais S já passou.


O pai, por sua vez, não questiona a hipótese materna, alegando ser, a mãe, da área da saúde. Essa posição de submissão do pai à mãe é percebida por S que, numa sessão, canta, referindo-se à posição do pai frente à mãe: <<<Vou não, posso não, quero não, a mulher não deixa não...>>>. Já a mãe: <<<“Vou sim, quero sim, posso sim, quem manda sou eu...>>>”.


Os encontros com os pais vão delineando o funcionamento dessa família, ilustrado pelos muitos comentários de S: uma mãe ausente, que “não conseguia parar para cuidar dos filhos”, devido às atividades profissionais, o que nos remete a um dos sintomas de S; já o pai, tentando dar conta do dia-a-dia das crianças. Enfim, como bem definiu nosso paciente: <<<É uma casa onde tudo é ao contrário, onde tudo está de cabeça para baixo>>>. Ou ainda: <<<Uma mãe ambulância e um pai tartaruga>>>.


Jerusalinsky (2007; 76-77), nos aponta, em seu seminário sobre ‘O Declínio do Império Patriarcal’, uma mudança do modo com que o objeto primordial é oferecido pelo Outro primordial, e raciocina:


“(...) Se o pai e a mãe, de modo equivalente, partilham da tramitação e intimidade com os objetos primordiais, a identificação primária da criança, de que Freud fala ser sempre inicialmente com o pai, como pode ser diferente, se a apresentação desses objetos primordiais se cumpre tanto com um quanto com outro? Até pouco tempo atrás, essa identificação era realizada com alguém preservado dessa intimidade com os objetos primordiais”(olhar, voz, peito, cocô), “a saber, o pai como encarnação da introdução desse objeto tão particular que provém de fora, que não tem resto e que é o falo: puro significante (...).”


Portanto, pergunta Jerusalinsky:


“(...) a maternização da posição masculina, (...) o fato de que o homem também apareça ligado à intimidade desses objetos e a paternização da posição feminina, ou seja, o distanciamento da mãe em relação à intimidade com esses objetos primordiais, não implicaria, per se, numa transformação no modo como esse significante marca o sujeito(...)”?


A questão a qual nos remete Jerusalinsky (2007;76) nos parece estar implicado, no caso apresentado.


“Se há uma mudança na posição significante em que os objetos primordiais são oferecidos e é a partir dessa posição que se determina que tipo de relação o sujeito vai ter com o discurso, como ele vai se representar no discurso, na diferença que o singulariza?(...)”.


Ao montar quebra-cabeças, representando o corpo de um menino e o de uma menina respectivamente, S, imita a voz feminina, dizendo de forma ameaçadora: <<<Você está proibido de falar aquela palavra que começa com S, senão vou dar um chute no seu pênis.>>> Justamente a letra que marcaria a posição do pai, a qual, identificado ao mesmo, possibilitaria a S, que tem dele mesmo nome, a partir da referência fálica, poder dizer-se “ super-herói S”.


Lebrun (2010; 86-87) ressalta que Lacan fez emergir a função paterna como:


“(...) um significante mestre, um S¹, que assegura ao sujeito sua inscrição no Outro (...)”. Ou seja, “(...) um significante, uma letra, que vem fazer sulco, uma marca, um traço (ou traços), que escreve um gozo particular.”


O sujeito, então, se inscreve na estrutura da linguagem, a partir de um significante pai, e este não é mais necessariamente o mesmo pai para todos. Por isso Lacan, passará a se referir aos Nomes-do-Pai.


Lebrun (2010; 56) afirma ainda sobre o Nome-do-Pai:


”é o significante de uma operação de linguagem que alivia o sujeito de se fazer o significado do desejo da mãe”. Ele, portanto, “consente a inscrição da castração, tornada presente pela consistência do significante fálico que o pai tinha, até então, a responsabilidade de representar”


Como poderá, então, a função paterna operar de forma consistente, constituindo um Nome-do-pai do qual, mais adiante, S possa dele se servir, se o pai, no real, encontra-se sem voz, sem legitimidade? Com a crise da representância fálica, sem um outro para se confrontar, o fantasma se instala no comando do funcionamento psíquico, no lugar do enlace que o significante faz entre sujeito e discurso, ou seja, ao invés de ser determinado pela posição do sujeito do inconsciente, a qual permitiria por sua vez, a articulação do individuo com o coletivo, emerge “o maluco”, no lugar do sujeito S.


Com o caminhar dos trabalhos terapêuticos, buscando garantir, em sua análise e nas sessões de psicomotricidade, o espaço de escuta, apesar de sua dificuldade em assumir o lugar de fala, bem como servindo como suporte para a confrontação com o que era da ordem da impossibilidade, S pôde ir se deslocando, aos poucos, da submissão ao fantasma materno, para uma posição de sujeito da enunciação, portador de um saber.


S, agora em um contexto de psicomotricidade em grupo, verbaliza pela primeira vez, ao ser indagado sobre o motivo de seu movimento estereotipado << porque sou maluco>>. A posição de exterioridade ao seu discurso tem um efeito de corte em tal movimento estereotipado. Em uma outra sessão, o movimento estereotipado se repete novamente e desta vez pergunta: <<Porque sou ansioso?>> E a cena se repete ao planejar a construção de uma casa e preparar uma armadilha na porta, caso algum inimigo entre. Nota-se que já é capaz neste momento de organizar seu esquema corporal para dar conta de construir esta armadilha, bem complexa por sinal, o que antes não seria possível. Responde ao ser indagado novamente sobre seu movimento estereotipado: <<porque estou emocionado! Eu consegui! Deu certo>>


É o significante nome-do-pai que permite a criança transpor a imagem corporal do registro imaginário para o registro simbólico, ou seja, transpor de uma corporeidade especularizada para uma recortada pelo furo que a faz girar em torno de algo não apreensível, pois é ai que o corpo se organiza e se coordena.


Bergés (2004) nos coloca em seu texto “Do corpo à letra”, “o que faz a motricidade na sua terminologia é justamente o que falta à imagem; (...) a imagem se encontra com um furo, se encontra com algo que não é representado”. Não sendo representado pode se tornar um enigma, pois é a letra e não o signo que dá apoio ao significante.


As intervenções feitas junto aos seus pais, diga-se de passagem, frequentes, foram também decisivas para o processo de subjetivação de S e, consequentemente, para a sua organização psicomotora e avanços na aprendizagem. Intervenções feitas no sentido de possibilitar a S ser filho de um homem que soubesse ser pai e de uma mulher que pudesse funcionar como uma mãe.


Talvez por tudo isto, muitas sessões de análise se passaram na tentativa de fazer prédios subirem. Inicialmente as tentativas, sempre frustradas, eram acompanhadas de queixas em relação ao pai, o qual, segundo S, não lhe oferecia o material necessário para construí-los. No entanto, ele não desistia. Em dado momento, passa a construir aviões, televisões LCD e ferrovias, com o intuito de mostrar ao pai como são os objetos que podem dar a ele uma importância, um valor, um olhar de reconhecimento, por parte dos seus pares. Assim, aos poucos, de um lugar enfraquecido, desqualificado, o pai começa a aparecer no discurso de S, como aquele que pode oferecer-lhe os objetos que lhe servirão como insígnias fálicas.


Um certo dia, adentra o consultório, dizendo-se muito contente, pois o pai, agora brincava com ele e lhe tinha ensinando a jogar UNO. Passa, então, a demandar jogar UNO com frequência. Interessante ser justamente UNO, uma referência ao traço unário?


Como o pai assume uma posição mais firme em relação aos limites, e a mãe procura estar mais atenta para não desautorizá-lo, S, com maior frequência vai podendo confrontar-se com o “NÃO”, o que o leva, em determinados momentos, a dizer que odeia o pai, que odeia ter o mesmo nome dele, pois odeia que lhe digam não. E nesses momentos, busca tornar-me sua cúmplice, pedindo, insistentemente, que convença seu pai a ceder, mas, a posição mais firme do pai, possibilita, que S possa fortalecer-se e a colocar-se mais confiante frente aos desafios ou às impossibilidades que surgem.


Numa sessão, chega desafiando-me para um jogo e me pede para fazer uma medalha de ouro, pois, caso consiga vencer-me, quer mostrá-la ao pai e às garotas. Agora, conversa com o pai, tem uma maior cumplicidade com ele e inclusive encontra nele as dicas de como lidar com uma mulher.


Passado o dia dos pais, chega à sessão dizendo que quer fazer um Pup-up, inspirado nos que fez para dar de presente ao mesmo. Sem solicitar ajuda, sozinho, com tranquilidade, consegue fazer o prédio subir e diz animado “É a primeira vez que consigo fazer uma coisa que dá certo”.


Será demais afirmar que o pai teve tudo a ver com Isso?


 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BERGÉS, Jean. O corpo na neurologia e na psicanálise: lições clinicas de um psicanalista de crianças. Porto Alegre: CMC, 2008.


JERUSALINKY, Alfredo. Seminário I. São Paulo: Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia. Lugar de Vida, 2001


JERUSALINKY, Alfredo. Seminário V. São Paulo: Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia. Lugar de Vida, 2007


LEBRUN, Jean-Pierre.um mundo sem limite: ensaio para uma clinica psicanalítica do social. Porto Alegre: CMC, 2004.


LEBRUN, Jean-Pierre. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008.


LEBRUN, Jean-Pierre. O mal-estar na subjetivação. Porto Alegre: CMC, 2010.

 

SOBRE AS AUTORAS

Anabel Guillen Garcia Psicanalista. Graduada em psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialização em Psicopedagogia pela UFBA. Analista membro da Associação de Psicanálise da Bahia. Atualmente atua como psicanalista na instituição LUGAR - Centro de Estudos Interdisciplinares e Atendimento Clinico. Contato: belguillen@hotmail.com Maria Luisa Inguaggiato Psicomotricista. Graduada em Fisioterapia pela Pontifica Universidade Catolica Campinas (1990); especialização em Psicomotricidade Relacional e Psicossomática; mestrado em Dance Movement Therapy - University Of Surrey - Roehampton (2006) revalidado pela UFBA - Departamento de Dança. Sócia Titular da Associação Brasileira de Psicomotricidade (SBP); Presidente do ABP – Capitulo Bahia. Atualmente atua como psicomotricista e terapeuta corporal na instituição LUGAR - Centro de Estudos Interdisciplinares e Atendimento Clinico. Coordenadora do curso de pós-graduação lata-senso em Psicomotricidade pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Contato: ml.inguaggiato@gmail.com


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