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O real do corpo na clínica psicomotora com crianças

Por Genivaldo Macário


“O desejo enquanto real não é da ordem da palavra e sim do ato”.

Jacques Lacan


Neste evento intitulado de DIÁLOGOS PSICOMOTORES realizado pela Associação Brasileira de Psicomotricidade – Capítulo Bahia – na contribuição à sessão do EIXO CLÍNICO, o meu intento é tratar sobre o real, o simbólico e o imaginário, relacionando-os com os sintomas com os quais a criança chega na clínica Psicomotora, geralmente relatado (falado) pelos pais[1], com o modo como a criança apresenta o seu próprio sintoma e como o psicomotricista escuta e provoca os seus direcionamentos. Tenho como objetivo tecer considerações sobre como o REAL do corpo da criança é simbolizado na Clínica Psicomotora, e como a criança sai do sintoma dos pais até chegar no seu próprio sintoma.

Situando a minha explanação no que pretendo apresentar para juntos pensarmos sobre estas questões, início trazendo a teoria dos nós com base em Jacques Lacan, tratando do real, do simbólico e do imaginário na Clínica Psicomotora, focando e dando ênfase na dimensão do real no corpo da criança e suas amarrações.


Real, simbólico e imaginário na clínica


Para focar no real do corpo, início pelos três registros essenciais da realidade psíquica humana, o REAL, o SIMBÓLICO e o IMAGINÁRIO. E, melhor dizendo, quero tratar do corpo real, do corpo simbólico e do corpo imaginário, mas trazendo todas as questões em volta do real, situando-o como uma dimensão que vem antes de tudo e anterior à palavra.

O Imaginário diz respeito à imagem, que segundo Lacan, nos remete ao estágio do espelho, que vai da imagem do engano ao reconhecimento da própria imagem - “o estádio do espelho como formador do eu” - fase que segundo Lacan (1949), diz respeito ao processo através do qual à criança alcança o reconhecimento da própria imagem. Inicialmente quando a criança olha no espelho, se vê e pensa que é outra criança. Aos poucos, ela vai tomando consciência que tudo é duplicado no espelho, e assim ela começa a entender que aquele que vê no espelho é sua própria imagem. Portanto, o imaginário é o registro da ilusão, apresentando como produto, a alienação do próprio campo da linguagem.

Qual o efeito que o imaginário produz na percepção do psicomotricista na clínica? Logo de entrada, articulo que o imaginário produz a ideia de que compreendemos tudo aquilo que escutamos do outro. Para Lacan, essa é uma ilusão sustentada pela dimensão imaginária da linguagem. A ideia de que estamos compreendendo o que escutamos é uma questão basilar para a sustentação da escuta no diálogo entre o psicomotricista, os pais e a criança. E assim vale termos o cuidado de não alimentarmos a ilusão de que tudo que existe no mundo é real, e que as palavras servem para abordar e narrar esse “real”.

O Simbólico diz respeito à fala (a palavra), e se apresenta como um lugar de duplo sentido, o sujeito (pais e ou criança) fala uma coisa, mas o que o outro, no caso o psicomotricista escuta são os significantes, e assim, podemos escutar uma outra coisa. Por exemplo: a criança diz uma coisa, mas podemos atribuir um outro sentido diferente daquilo que é dito. Logo, o simbólico é demarcado pelo duplo sentido. Quando o sujeito fala, escutamos uma cadeia de significantes. O falante pode dizer algo e podemos escutar e compreender uma outra coisa.

O Real é a falta de sentido, é o inominável, o indizível. Apresenta-se através das sensações no corpo e diz respeito aos afetos do corpo. É aquilo que ainda não foi dito, ainda não foi nominado. Logo, o real é o que está antes da palavra, e somente quando uma “coisa” é nomeada é que ela passa a existir. O real está para além do simbólico e para além do imaginário, portanto, não se apresenta no duplo sentido causado pela palavra, nem no pleno sentido da imagem.

Na sucessão do que estou falando, o real vem primeiro, mas para entendê-lo é necessário que ele seja simbolizado, ou seja, nominado através da fala, da palavra.

Portanto, a existência é um produto da linguagem. O real, por não ter nome, não existe e insiste em ser nomeado. Logo, o real não existe enquanto estiver fora da linguagem.

Para Lacan (1962/63), O real é a angústia que afeta, é a libido e está relacionado à energia da pulsão. Portanto, é o que faz pulsar, é o que faz gritar. O real está sempre articulado com o imaginário e o simbólico.

A amarração dos três registros se apresenta assim como um nó borromeano[2], um nó dado com três laços, que ao sair um, os outros se desfazem:


Figura 1: Nó Borromeano

A realidade psíquica é articulada desta forma, assim como um nó borromeano. O nosso espaço psíquico é composto por estas três dimensões: a dimensão do real composta com tudo que é irrepresentável, do campo do inimaginável; a dimensão do simbólico composta por tudo que é dito, do campo da linguagem (fala), e a dimensão do imaginário que é composta com tudo que é imaginado, do âmbito da imagem.


Qual o lugar do real na articulação dos três registros essenciais da realidade psíquica, na Clínica Psicomotora?



Os pais chegam na clínica falando da criança com base em suas percepções imaginárias, ou seja, sobre a imagem que eles percebem e atribuem e interpretam sobre o que está acontecendo com a criança. Partindo deste pleito, convoco aos seguintes questionamentos: De que/quem os pais estão falando? De seus incômodos? Dos incômodos do âmbito familiar? Ou dos sintomas da criança?

Afinal qual é o foco da vinda da criança à clínica psicomotora? Quem está decidindo o destino da criança? O que realmente os pais sabem do sintoma da criança? E onde está localizado o ‘real’ que desencadeia estas queixas e este sintoma?

Com base no que Levin (1995), Psicomotricista Argentino, diz a respeito do real do corpo, ou seja, o real do sintoma, o que vemos se dá com base na impressão daquilo que estamos presenciando, o que pode não coincidir com o que será simbolizado pela criança sobre o seu sintoma.


Ao observar uma criança com uma perturbação severa, como por exemplo o autismo, tem-se a impressão de que é o corpo que a domina, que a criança não pode se apropriar de seu corpo (o corpo e gozo estão unidos). É o puro corpo, pura “carne”, a não lei, a ausência de legalidade, o puro real, ali não há um sujeito. Este puro corpo “coisa” não cai, presentifica a inércia, a não direção, a não diferenciação, uma vez que não foi marcado, que não foi inscrito por nenhuma lei, pois não teve um Outro no qual refletir-se e a partir do qual se diferenciar. (LEVIN, p. 67).

Nesta citação Levin (1995) evidencia o real do corpo, aquilo que ainda é nominado de “coisa”, lugar que não houve a intervenção de um Outro[3], que ainda não foi dada a possibilidade de a criança ter a chance de diferenciar-se. Isto constitui o puro real, uma vez que a criança ainda não teve a oportunidade de falar daquilo que lhe “perturba”. O psicomotricista é aquele, cuja atitude é provocá-la a falar de seu sintoma, ou seja, simbolizar, facilitando assim, o processo de levar a criança a diferenciar-se e se perceber como sujeito, saindo do lugar do sintoma dos pais e compreendendo que ele tem o seu próprio sintoma.

O real, portanto, é o incontrolável, o insuportável. É a falta de sentido. Assim, o real se impõe, dói, provoca inercia e paralisa, parecendo dominar o corpo da criança.

Para Lacan (1962/63), quando o sujeito se depara com o real, logo se depara com uma angústia. E vale ressaltar que não existe angústia sem objeto.


Para Freud a angústia é uma reação ao perigo de uma perda de objeto. Lacan, porém, aponta outra coisa: a angústia não é sinal de uma falta, ela é sinal de uma falta do apoio da falta. A falta estruturalmente coloca o sujeito a desejar. O que vemos na angústia é que nesse lugar onde deveria estar a falta, um objeto vem tamponá-la. A angústia, portanto, não é perda de objeto, não é a falta de objeto, mas ao contrário, é a sua presença, é a presença de um objeto maciço, um objeto que é o mais íntimo, o mais profundo, o objeto último, a coisa, por isso, ela é o que não engana (MACHADO, 2021).

Logo, a angústia é o afeto que não se engana. Quando a criança chega na clínica ela chega acompanhada de seus pais, e estes falam das queixas sobre os sintomas dela. Todas as informações chegam faladas pelos seus pais e, mesmo quando a criança começa a falar ela o faz trazendo o real dos pais, pois ela chega alienada ao que escutou dos incômodos dos pais. O sintoma da criança se dá na tentativa de dizer algo aos seus pais. Mas antes, é oportuno pensar que há sim, uma angústia que vem dos pais e se reflete no corpo da criança. O sintoma pode sim, ser uma resposta ao que há de sintomático na própria família. A criança adoece, faz sintoma geralmente por concordar e alienar com o que é falado sobre ela, ou seja, alguma “coisa” se instaura provocando uma angústia, e não há angústia sem objeto, assim como não há sintoma sem uma causa.

No texto - notas sobre a criança -, de Lacan (1966), ele postula que “o sintoma da criança é o que há de sintomático na família parental”. Entretanto, o sintoma da criança pode ser constituído como uma resposta àquilo que há de sintomático na própria família. E o que está em volta do sintoma? E o que leva os pais a perceberem de que algo novo está acontecendo? E o que o Psicomotricista procura ver quando estes relatos chegam na clínica? O que os pais falam e o que o psicomotricista escuta?

Quando convido a olhar para o real do corpo, é importante lembrar do efeito da ilusão da dimensão imaginária da linguagem. O que é apresentado como sintoma pode não coincidir com aquilo que parece, e sim outra coisa. Os medos, as fobias que são ditos na chegada, nas primeiras entrevistas na clínica, nos solicitam a lembrar que escutamos os significantes, e vale ressaltar do lugar do duplo sentido, peculiar à dimensão simbólica.

Quando os pais dizem que a criança está mordendo os seus pares, quando está muito agressiva e ou quando está inquieta, eles estão apontando para o real de cada uma destas situações: morder, agressão e inquietação. Cada um destes três significantes representam o cerne da dimensão do real no/do corpo da criança. A criança precisa falar sobre o que de fato está acontecendo. Ela mesma precisa nomear o real de seu corpo, simbolizando-o na proporção em que ela vai falando sobre isso através de diferentes modos. Seja falando, desenhando, pintado ou brincando em torno da “coisa” em questão ela começa a desdobrar a situação compreendendo e se dando conta do que se passa com ela.

No texto de Freud (1909) “O pequeno Hans”, a criança tinha fobia a cavalos. Ele tinha medo de ser mordido por um cavalo, como também o medo de cair dos carros conduzidos pelo animal. O Sintoma do pequeno Hans foi falado a Freud pelo pai. Seu relato foi o efeito da imagem do filho percebido por ele, e para ele se tratava de uma fobia a cavalos.

E o que havia naquele momento no contexto do pequeno Hans? Ele sentia-se desamparado com o nascimento da irmã. A desatenção dos pais, muito envolvidos com outras questões, leva Hans a se deparar com uma falta e surge aí o objeto, a fobia de cavalo. E assim ele desloca suas questões para os cavalos. Desta situação surge a presença de um objeto maciço, um objeto que é o mais íntimo, o mais profundo, o objeto último, a “coisa”, por isso, ela é o que não engana, e daí surge o real do sintoma - a fobia de cavalo.

Vale salientar que a fobia de Hans, que tinha 05 anos de idade, surgiu após o nascimento da irmã Hanna, provocando nele o desejo de posse pela mãe e ódio ao pai. Havia se originado dos complexos que contribuíram para a repressão e mantinham sob repressão os sentimentos libidinais de Hans para com sua mãe. Isso nos retoma ao jovem Édipo cujo desejo era deitar-se com a mãe e assassinar o pai. Hans desenvolveu a fobia a cavalos, o que antes eram objetos de suas brincadeiras.

A função da fobia, neste caso, era eliminar o conflito devido a ambivalência de amor e ódio dirigidos a seu pai e seu excesso de afeição pela mãe.

Freud realizou este trabalho com apenas um encontro com o pai e manteve trocas de cartas nas quais conversava sobre todo o processo dos diálogos do pai com o filho. Hans foi reorganizando o que sentia, imaginando que ele se casava com a mãe, assim como seu pai se casaria com a mãe dele, sua avó. Hans tinha uma grande imaginação e uma boa comunicação verbal, comunicando-se com clareza com o seu pai. E assim, ele foi dando voltas simbolizando o real de seu corpo.

E foi nesta amarração entre o real, o simbólico e o imaginário que Hans com ajuda de Freud e do seu próprio pai, cria a sua própria realidade psíquica.

Para Freud o corpo é o lugar de inscrição das marcas e ou traços minêmicos das experiências primordiais da criança, e estas são as experiências que demarcam o início da constituição do EU. É este o lugar onde emerge o pulsional, de modo que é também o corpo o meio onde acontece a realização da satisfação, seja através dos afetos do prazer ou do desprazer.


A amarração dos três registros na clínica psicomotora


A atitude do Psicomotricista na Clínica Psicomotora deve ser a de procurar oferecer condições para que a criança possa falar de si e de fato nomear essa parcela do real do seu sintoma. No entanto, só quando o real é simbolizado, e claro, nominado pouco a pouco é que este é colocado em estruturas imaginárias, criando uma amarração entre o simbólico, o real e o imaginário, estrutura bem representada por Lacan através do nó borromeano. É através deste continuum que a criança vai produzindo a sua realidade psíquica.

Para Lacan, a realidade não se reduz nem deve ser confundida com o real; a realidade é real, simbólica e imaginariamente constituída. Prontamente a realidade se dá pela passagem do real pelo simbólico (quando falado, nomeado), e pelo imaginário. Assim, realidade nada mais é do que o real que passou pela via simbólica e imaginária.


Considerações finais


Refletir sobre o real na Clínica Psicomotora com crianças, solicita do psicomotricista focar sua atenção a partir do real dos sintomas que lhes são informados nas entrevistas iniciais com os pais, lembrando que existem aí o real do sintoma do âmbito familiar e o real do sintoma da criança. O que está em jogo é a criança e seu sintoma. Portanto, a atitude do Psicomotricista é criar condições que proporcione a criança dar voltas sobre o real que se impõe através de suas atitudes e simbolizar criando cadeias de significantes. Aos poucos ela vai saindo do lugar de sujeito falado pelos seus pais e assumindo o seu lugar de sujeito falante. Assim, quando a criança começa a falar do real que lhe afeta, ela começa a sair do eixo sintomático de sua família e passa a se conscientizar de sua existência enquanto sujeito, e agora um sujeito com o seu sintoma.

É importante perceber que pensamento da Clínica como espaço onde a criança possa se reinventar, coaduna-se em primeira instancia com a ideia de que somente com o deslocamento do real do sintoma familiar para o real do sintoma da criança é que se possibilitará o início do processo de recriação de si, facilitado pela simbolização do real de seu próprio sintoma. Ela passa a (des)investir no sintoma para investir em outra coisa.

Intervir no real aponta para o campo da criatividade, possibilitando à criança se haver com o seu real. Ela simbolizando (falando) o seu real, cria sua própria realidade psíquica, renunciando a seu sintoma e se deslocando para um outro lugar, e é nesta perspectiva que ela pode encontrar uma satisfação superior ao gozo do seu sintoma, realizando assim a cura que não se cura.

Em se tratando de crianças na Clínica Psicomotora, as fantasias e brincadeiras, por serem próprias dos modos de interações com o meio, seriam então recursos de enfrentamento e reorganização desta realidade conforme o princípio do prazer, ocupando lugar central na estruturação psíquica da criança. O brincar e a arte, portanto, se impõem como grandes possibilidades de simbolização das fantasias produzidas pelas angústias.

 

[1] Neste texto pais se refere a pai e mãe vale lembrar é uma função, não diz respeito apenas a mãe e pai biológico, mas toda e qualquer configuração familiar. [2] Na topologia matemática lacaniana, o enlace borromeano ou o nó borromeano consiste em três círculos, ou anéis, o que estão interligados de forma que a remoção de qualquer um de seus anéis desata simultaneamente todos os três. [3] Outro com “O” maiúsculo representa o grande outro para Lacan. “O Outro é na verdade, o espelho no qual a criança se vê e se admira, ajustando sua imagem enquanto eu ideal às condições do Outro que vem no lugar do Ideal do eu.” QUINET (p.20, 2012).


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. FREUD, S. Análise de uma fobia de um menino de cinco anos (1909). In: Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

  2. LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do Eu (1949). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1998.

  3. LACAN, J. Nota sobre a criança (1969). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

  4. LACAN, J. O seminário - livro 10: a angústia (1962/63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

  5. LEVIN, Esteban. A clínica psicomotora: o corpo na linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

  6. MACHADO, Zilda. Da angústia ao desejo do analista. In: Revista Reverso. Ano - 30, N.56, p.35-40, outubro. Belo Horizonte, 2008.

  7. QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

 

SOBRE O AUTOR

Genivaldo Macário Doutor e Mestre em Educação (UFC); Psicomotricista, Sócio Titular da ABP; Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano - FCL- Fortaleza; Integrante da Comissão Científica da ABP, Capítulo Ceará.


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